O excesso de déjà vu nos videogames

Um pouco sobre Kena e a “falha na Matrix” em jogos

Daniel Schettini
5 min readOct 1, 2021
Kena: Bridge of Spirits (Ember Lab)

Esses dias precisei sair de casa para comprar algumas coisas que estavam faltando na cozinha. Um biscoito ou outro, para acompanhar o café, alguns ingredientes específicos e umas frutas.

Sair de casa em tempos de pandemia é sempre a mesma coisa: Bota a máscara, o frasco de álcool em gel no bolso e a ansiedade, companheira de todas as horas, na cabeça.

E lá vamos nós.

Por sorte, aqui no bairro tenho acesso a um mercadinho, onde consigo encontrar quase tudo que eu preciso comprar. E, no estabelecimento, o sentimento de looping é tão forte quanto os preparativos para sair de casa. Entro olhando para os lados, dou boa tarde e vou direto ao que interessa. Evito o bate-papo, tento não encostar em muitas coisas e vez ou outra saco o álcool do bolso. Higienizo as mãos e guardo o frasco, tal como um cowboy mal encarado e com pouco traquejo social.

Todo esse ciclo de repetição me deixa simplesmente exausto. Exaustão esta que não vem simplesmente do ato de ir a padaria mas sim de ter que seguir os protocolos, para que eu não me entregue a paranoia e ao medo de ficar doente. E seguir a risca tudo, coisa que venho fazendo desde o início dessa infinita crise sanitária, me faz ter a sensação de que estou sempre vendo as mesmas coisas, mesmas pessoas, mesmos lugares… e que tudo isso não terá fim.

Por vezes tenho a sensação de que estou vendo as mesmas cenas que vi no dia anterior. Tipo a cena do gato preto no primeiro Matrix. O tal do déjà vu.

E por que tal reflexão e o que isso tem relação com videogames — você me pergunta.

Bom… vamos lá.

Otriste fato que motiva esse texto é que a sensação de déjà vu vem me atacando também nos jogos — e não é de hoje. Já virou piada que tudo quanto é jogo de mundo aberto as pessoas comparam com The Legend of Zelda: Breath of The Wild, mas antes o único fator de identificação excessiva viesse desse exemplo.

Isso porque a repetição de ideias é basicamente uma tônica nos videogames modernos.

Se inspirar em mecânicas, cenários e conceito de jogos muito bem realizados é uma coisa comum — e não é algo exclusivo desta mídia. Daí vem as tendências, que normalmente partem de influentes títulos e franquias. Antigamente era tudo meio God of War. Tivemos a fase dos combates estilo a série Arkham do Batman. Durante um tempo era o “Isso é muito Dark Souls e, voltando bem mais em retrospecto, existiu a época em que tudo era meio parecido mesmo, por limitações ou por ser um período muito embrionário.

Mas o problema mora nos detalhes dessas inspirações e não no óbvio. Porque é muito fácil falar que Genshin Impact parece Zelda, né?

É. É sim.

Genshin Impact (miHoYo)

Passei os últimos dias jogando dois games expressivos dessa segunda metade de 2021: Deathloop e, logo em seguida, Kena: Bridge of Spirits. O primeiro traz conceitos que já vimos em outros títulos do estúdio responsável, a Arkane Studios, misturando inspirações de seus emblemáticos Dishonored (1 e 2) com mecânicas de multiplayer e elementos de roguelike (como Hades, por exemplo).

Já o segundo, faz uma salada de ideias que podemos identificar suas fontes com tanta facilidade que, em alguns momentos, chega a incomodar. Tem muito de jogos de aventura dos tempos do PlayStation One, elementos de The Legend of Zelda (dos tempos do Nintendo 64, principalmente), outras ideias de jogos como Uncharted, Pikmin, Horizon Zero Dawn e fora o visual, que parece querer que o jogador se sinta assistindo um filme da Disney Pixar.

Nada disso pode ser considerado necessariamente um problema. Mas… é. Tem muitos “mas” nisso tudo.

A grande diferença dessas misturas de ideias nos dois games é que enquanto o título da Arkane entrega uma experiência nova, que respeita a herança deixada pelo próprio estúdio, fazendo muito mais uma referência, que por vezes soa como uma assinatura e o próprio DNA dos desenvolvedores, o outro simplesmente… faz tudo muito safe. Kena é um grande “vale a pena ver de novo”, repleto de ideias recicladas que evocam memórias — mas que em pouquíssimos momentos chegamos perto de sentir algo genuíno. O jogo não se arrisca, não busca a ousadia e não tenta criar nada de diferente. E, por mais apelativo que possa soar, os momentos que nos remetem e escancaram suas influencias, só parecem servir para enfatizar que neste jogo tudo parece com alguma coisa mas nem sempre é bem executado. O que não surpreende, visto que falamos de um jogo de estreia, de um estúdio independente e jovem, e que dificilmente se sairia bem como os clássicos que o inspirou.

Mas veja bem. Ter referências não é o problema. E todos nós estamos cansados de saber que há muito tempo o “nada se cria, tudo se copia” é uma frase de rodapé em qualquer área criativa. É difícil inventar a roda nos dias de hoje. Mas em meio a tantos ctrl+c e ctrl+v, os destaques ficam naqueles que:

  1. Executam com perfeição as mecânicas que já conhecemos.
  2. Se arriscam, misturam ideias e acabam entregando uma experiência diferente.
  3. São capazes de evoluir os conceitos replicados.
Hollow Knight (Team Cherry)

Mas nem todos conseguem ser um Hollow Knight da vida — nada fácil, na verdade. O aclamado metroidvania que faz tudo o que já vimos, em diferentes jogos do gênero, parecer muito poderoso, muito inspirador… muito novo? Mas não é. Hollow Knight apenas eleva o gênero ao máximo e poda as arestas de suas inspirações para entregar uma experiência encantadora, destemida e principalmente genuína.

Neste caso, o déjà vu passa despercebido. E só faz, na real, cócegas no nosso coração. É bom, sabe?

Apesar de tudo, Kena: Bridge of Spirits tem seus pontos positivos. A Emberlab, estúdio responsável pelo game e conhecido por suas animações excelentes, colocou muito carisma nos personagens, que nas sequências animadas parecem nos transportar realmente para um filme com uma vibe de conto de fadas da Dreamworks ou Disney.

Majora’s Mask — Terrible Fate (Ember Lab)

Entre erros e acertos o jogo pode até agradar a muitos. E esse sentimento de repetição pode sequer incomodar, principalmente se o jogador não for um ávido devorador de jogos ou muito atento a essas questões. Afinal, jornada de Kena tem muita beleza, charme e consegue nos envolver quando vemos a trama se desenvolver. Tem seus momentos. Uma pena que não possamos apenas assisti-lo (cruel, eu sei).

Torço para que uma sequência de Kena venha um dia. E que esta não seja tão refém dessa estrutura quase roteirizada de mecânicas repetidas e do gameplay extremamente formulaico. Só espero que, se um dia uma sequência vier, eu não sinta este mesmo déjà vu.

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Daniel Schettini

Roteirista, podcaster, quase-youtuber e apaixonado por videogames.